"A frequentação"
"...na nossa relação com a arte nada é espontâneo. Quando julgamos um objeto artístico dizendo 'gosto' ou 'não gosto', mesmo que acreditamos manifestar opinião 'livre', estamos na realidade sendo determinados por todos os instrumentos que possuímos para manter relações com a cultura que nos rodeia. 'Gostar'ou 'não gostar' não significa possuir uma 'sensibilidade inata' ou ser capaz de uma 'fruição espontânea' - significa uma reação do complexo de elementos culturais que estão dentro de nós, diante do complexo cultural que está fora de nós, isto é, a obra de arte. ...
Não há escapatória: ver um quadro, ler um livro, é utilizar instrumentos culturais para apreendê-los. Se o quadro representa um homem na cruz, sabemos que se trata da crucificação de Cristo; se reproduz uma montanha e um rio, reconhecemos o que a nossa cultura denomina 'paisagem'; se o livro começar por: 'Uma noite destas, vindo da cidade para o engenho novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui no bairro, que eu conheço de vista e de chapéu', nós compreendemos a frase porque está escrita numa linguagem familiar e denominamos os elementos culturais aos quais faz referêcia.
O que é grave nas ideias de 'espontâneo', de 'sensibilidade inata', é que elas impedem uma relação mais elaborada com a obra de arte, o esforço necessário para um contato mais rico com ela. A frase que citamos acima, aparentemente simples, é assim tão clara? Todos os leitores brasileiros - ou mesmo estrangeiros, caso o livro seja traduzido - saberão o que é o engenho novo? Trem da Central, que hoje associamos a um meio de transporte proletário, insuficiente e malconservado, terá a mesma significação na frase? Além disso, quantos de nós compreendemos sem confusão o que é o 'conhecer de chapéu', isto é, a relação cerimoniosa, mas cordial, entre duas pessoas, traduzida pelo gesto cortês de saudação que consiste em soerguer ligeiramente o chapéu, hoje, que os homens não usam chapéu?
Essas dificuldades simples, e outras mais profundas, estão sempre presentes no nosso contato com a obra. Para conseguirmos dialogar com ela, é preciso enriquecer esse contato. E se não há dúvida de que temos preferências e afinidades por um ou outro objeto artístico, o importante é que nossa relação com ele seja sempre rica".
COLLI, Joge. O que é arte, p.117-26. In Ferraz, Maria Heloísa C. de T. e FUSARI, Maria F. de Rezende. Arte na Educação Escolar. 4 ed. - São Paulo: Cortez, 2010.